terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

sonhos caídos

Longa avenida dos meus sonhos
Plantados à beira do nada
Caídos nas folhas do Outono
Dançante
Imploro-te
Caminhante
Nas pressas e passos do sono
Não pises na berma da estrada
Os meus sonhos caídos

às escondidas


Da copa, por detrás da pinheira alta
Misteriosa vieste e sedutora
Espreitar-me no caminho. Aquela hora
De noite a vir, de dia que já falta

Súbita, há uma alegria que me assalta
E súbita e tão falsa se demora
Em mim quão falsa em ti e enganadora
É a luz com que brilhas na ribalta

Nalgumas curvas fujo-te na estrada
Jogamos, infantis, às escondidas
Sempre me apanhas, altiva e silente

Derramas-te em luar incandescente
Nas muralhas do Castelo e, vencidas
Abro as portas da torre do meu nada

salgueiro despido

Salgueiro despedido
Pedra nua
Nem o Sol te aquece
Nem te beija a Lua
Só o gelo te arrefece
Só os ventos te abraçam
E te deixam ressequido

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

materna doçura (romance de possidónio cachapa e peça teatral acert)

Por detrás dos meus olhos, nevoentas
As grades da prisão erguem-se altivas
Feitas só de memórias, todas vivas
Todas inda a sangrar, frescas, cruentas

Vã doçura materna que te ausentas
Em sombras de carícias fugitivas
Vil paterna amargura, tu reavivas
A agonia dos dias que atormentas

Uma onda de razão viesse, breve
Lavar minhas nemórias, uma a uma
Livrar-me da prisão do sentimento

Onda que tudo lave e tudo leve
E deixe atrás de si, na branca espuma
Um rasto só de paz, de esquecimento

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

saboroso castigo


Palavra, minha pátria, minha terra
Minha casa, aconchego onde descanso
Cadeira onde me sento e me balanço
Minha aberta janela de onde alcanço
A clareza que o seu segredo encerra

Meu castigo que às vezes me desterra
Incógnita aventura em que me lanço
Meu chão por cultivar onde me canso
Sereno espelho de água de remanso
Minha paz, minha luta, minha guerra

profeta


Comi o Livro
Mastiguei-o
Palavra a Palavra
E como boi que precisasse
De retesar o gacho para o jugo
Ruminei-o
Noite após noite
Tinha sempre o sabor absoluto
De algo inesperado que se espera
Aconteça

o lugar de onde se vê


Poder ter uns braços mais longos
Que o Tempo
Erguê-los mais alto para alcançar
O inalcançável
Ter a grandeza infinita da criança
E pedir colo
Subir ao lugar de onde se vê

Dizer Amor
Como se uma ínfima porção
Desse pão universal e cósmico
Nos tocasse os lábios
A língua, a boca toda
E nos matasse a fome
De viver

brinde dos desnamorados

Sequiosos corações de amor sedentos
Como é sedenta a terra dos desertos
Em vão rogando, ardente, aos céus abertos
Umas gotas de chuva, por unguentos

Famintos de ilusão, cegos de ventos
Nunca cheios de esp'ranças, sempre incertos
Em vão levando os olhos bem despertos
Raiados já de dor, quase sangrentos...

Em vão somos, em vão vamos buscando
Não há pão que sacie a nossa fome
Não nos matam a sede frescas águas

Como os ébrios, as taças despejando
Partilhemos a dor que nos consome
O líquido amargor das nossas mágoas

sábado, 10 de fevereiro de 2007

não seria Inverno


Se reinventássemos o tempo
das amendoeiras em flor
nas encostas escarpadas
da nossa condição
Se cegássemos o nosso olhar
com o amarelo luminoso
das mimosas
Se brotassem dos nossos lábios
camélias de todas as cores
Se nos abrigássemos
cheios de frutos como as laranjeiras
num recanto soalheiro
Se floríssemos o arbusto
dos nossos espinhos
num jardim que espera
E deixássemos que a poda
nos preparasse para crescer
E a cava nos rasgasse as entranhas
para acolher a semente
Se entregássemos o Coração
ás chamas das queimadas
Se nas águas profundas
impedíssemos de congelar
a corrente das nossas lágrimas
Se nas bermas da geada
acendêcemos o fogo das lareiras
em nossas veias
E mantivéssemos voltada a Sul
na parede a janela que nos une
Não seria Inverno
Seria...

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

descensão oblíqua

Como folha outonal que se desprende
Levemente do ramo que a susteve
E se deixa levar p'la brisa leve
Até poisar no chão onde se rende

Como último raio que se acende
Nessa hora em que no Mar se desfaz breve
O Sol do céu amante que o conteve
E desfere um fulgor que não se entende

Assim me sei ou julgo querer saber-me
Em descida outonal antecipada
Em morte de poente fulgorante

Mas não há chão disposto a receber-me
Ou ventos que me levem de rajada
Nem me serve de tumba o Mar amante