quarta-feira, 23 de maio de 2007

o silêncio necessário


Não, tu não és capaz de Poesia
De verter em palavras a Saudade
De esculpir da Beleza a suavidade
De decantar em versos a Harmonia

Não, tu não és capaz de tal porfia
De desvendar a essência da Verdade
De alcançar a raiz da Realidade
De ver como se mostra e se recria

Cala, portanto, o estro enjeitado
Pousa no peito a pena e seu arado
Lavrador de palavras não serás

Pousa também por terra o teu cajado
Deixa dizer a quem dizer é dado
Bom guardador de versos não darás

quarta-feira, 2 de maio de 2007

à mulher-mãe


Se eu pudesse colher todas as rosas
Até as mais bravias e espinhosas;
Se eu pudesse tomar todas as flores
Com todos os perfumes e as cores…

Se eu pudesse escrever todas as prosas
Facundas, expressivas, grandiosas;
Se eu fosse um dos poetas trovadores
De inato dom de verso e seus candores…

Se conseguisse, enfim, tecer, frondosas
As coroas de todos os louvores
Premiadoras de entrega e sofrimento…

Minhas mãos colheriam ufanosas
Diria, por palavras, vãos clamores
Porque, Mãe, é maior teu merecimento

segunda-feira, 2 de abril de 2007

sexta-feira santa

"sem distinção nem beleza para atrair o nosso olhar
nem aspecto agradável que possa cativar-nos" (Is.)

Não tenho nem beleza nem bravura
Nem tenho a quem votar o coração
Consumo-me por dentro em confusão
E perco-me nas ruas da amargura

Este meu estado de alma em que perdura
A vida que só vivo e sem razão
Há-de trazer-me preso e atado à mão
Até que me liberte paz futura

Descreio que me tenha por amigo
Não tenho beleza alguma que a atraia
Por ela já não luto de fraqueza

Falta amor além de força e beleza
Assim pe perco até que o pano caia
Venha pois o fim, venha ter comigo

vaso de barro

Vazio de mim
Pareço erguer-me
E habitar a Palavra
Vazio de sede
Sou vaso de barro
Que se abeira da fonte
Vazio de olhar
Contemplo o Céu
Com olhos de criança
Vazio de emoção
Choro lágrimas amargas
Com sabor de alegria
Vazio de porquês
Sou penosamente esmagado
Pelo peso do divino
Vazio de limites
Sou água derramada
Na terra ardente de secura

terça-feira, 20 de março de 2007

oração


Contemplo o lenho mudo da tua cruz
Vazia dos teus braços, sem olhar
Muda e cega... E fonte sempre a jorrar
Infinda vida, paz e forte luz

Eu sei que ali morreste, Bom Jesus
Mas não podias lá continuar
Quiseste deixar vago esse lugar
Àqueles que a tua voz chama e seduz

Os teus braços na cruz são os de tantos
Pregados, ora, em dores de aflição
Chagados corpo e alma em agonia

Faz que todos descubram em seus prantos
A luz e a força da ressurreição
E vivam já serenos na alegria.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

sonhos caídos

Longa avenida dos meus sonhos
Plantados à beira do nada
Caídos nas folhas do Outono
Dançante
Imploro-te
Caminhante
Nas pressas e passos do sono
Não pises na berma da estrada
Os meus sonhos caídos

às escondidas


Da copa, por detrás da pinheira alta
Misteriosa vieste e sedutora
Espreitar-me no caminho. Aquela hora
De noite a vir, de dia que já falta

Súbita, há uma alegria que me assalta
E súbita e tão falsa se demora
Em mim quão falsa em ti e enganadora
É a luz com que brilhas na ribalta

Nalgumas curvas fujo-te na estrada
Jogamos, infantis, às escondidas
Sempre me apanhas, altiva e silente

Derramas-te em luar incandescente
Nas muralhas do Castelo e, vencidas
Abro as portas da torre do meu nada

salgueiro despido

Salgueiro despedido
Pedra nua
Nem o Sol te aquece
Nem te beija a Lua
Só o gelo te arrefece
Só os ventos te abraçam
E te deixam ressequido

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

materna doçura (romance de possidónio cachapa e peça teatral acert)

Por detrás dos meus olhos, nevoentas
As grades da prisão erguem-se altivas
Feitas só de memórias, todas vivas
Todas inda a sangrar, frescas, cruentas

Vã doçura materna que te ausentas
Em sombras de carícias fugitivas
Vil paterna amargura, tu reavivas
A agonia dos dias que atormentas

Uma onda de razão viesse, breve
Lavar minhas nemórias, uma a uma
Livrar-me da prisão do sentimento

Onda que tudo lave e tudo leve
E deixe atrás de si, na branca espuma
Um rasto só de paz, de esquecimento

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

saboroso castigo


Palavra, minha pátria, minha terra
Minha casa, aconchego onde descanso
Cadeira onde me sento e me balanço
Minha aberta janela de onde alcanço
A clareza que o seu segredo encerra

Meu castigo que às vezes me desterra
Incógnita aventura em que me lanço
Meu chão por cultivar onde me canso
Sereno espelho de água de remanso
Minha paz, minha luta, minha guerra

profeta


Comi o Livro
Mastiguei-o
Palavra a Palavra
E como boi que precisasse
De retesar o gacho para o jugo
Ruminei-o
Noite após noite
Tinha sempre o sabor absoluto
De algo inesperado que se espera
Aconteça

o lugar de onde se vê


Poder ter uns braços mais longos
Que o Tempo
Erguê-los mais alto para alcançar
O inalcançável
Ter a grandeza infinita da criança
E pedir colo
Subir ao lugar de onde se vê

Dizer Amor
Como se uma ínfima porção
Desse pão universal e cósmico
Nos tocasse os lábios
A língua, a boca toda
E nos matasse a fome
De viver

brinde dos desnamorados

Sequiosos corações de amor sedentos
Como é sedenta a terra dos desertos
Em vão rogando, ardente, aos céus abertos
Umas gotas de chuva, por unguentos

Famintos de ilusão, cegos de ventos
Nunca cheios de esp'ranças, sempre incertos
Em vão levando os olhos bem despertos
Raiados já de dor, quase sangrentos...

Em vão somos, em vão vamos buscando
Não há pão que sacie a nossa fome
Não nos matam a sede frescas águas

Como os ébrios, as taças despejando
Partilhemos a dor que nos consome
O líquido amargor das nossas mágoas

sábado, 10 de fevereiro de 2007

não seria Inverno


Se reinventássemos o tempo
das amendoeiras em flor
nas encostas escarpadas
da nossa condição
Se cegássemos o nosso olhar
com o amarelo luminoso
das mimosas
Se brotassem dos nossos lábios
camélias de todas as cores
Se nos abrigássemos
cheios de frutos como as laranjeiras
num recanto soalheiro
Se floríssemos o arbusto
dos nossos espinhos
num jardim que espera
E deixássemos que a poda
nos preparasse para crescer
E a cava nos rasgasse as entranhas
para acolher a semente
Se entregássemos o Coração
ás chamas das queimadas
Se nas águas profundas
impedíssemos de congelar
a corrente das nossas lágrimas
Se nas bermas da geada
acendêcemos o fogo das lareiras
em nossas veias
E mantivéssemos voltada a Sul
na parede a janela que nos une
Não seria Inverno
Seria...

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

descensão oblíqua

Como folha outonal que se desprende
Levemente do ramo que a susteve
E se deixa levar p'la brisa leve
Até poisar no chão onde se rende

Como último raio que se acende
Nessa hora em que no Mar se desfaz breve
O Sol do céu amante que o conteve
E desfere um fulgor que não se entende

Assim me sei ou julgo querer saber-me
Em descida outonal antecipada
Em morte de poente fulgorante

Mas não há chão disposto a receber-me
Ou ventos que me levem de rajada
Nem me serve de tumba o Mar amante



quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

Introitum


"Começarei agora
Quero experimentar a força das minhas palavras
Vou fazer-te chorar"
Se já não és capaz de chorar
Não continues a ler
No entanto, se queres experimentar
A força redentora da Palavra
Continua a ler
Eu continuarei a escrever
Começarei agora e sempre de novo
Serás capaz de chorar?
A Palavra resgatar-te-á